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Nomofobia existe mesmo?

Você seria capaz de passar uma semana inteira sem usar o celular? No modelo atual de interação de comunicação, isso poderia ser bastante difícil — seja por questões de trabalho ou manter contato com outras pessoas. Há algum tempo o aparelho vem deixando de ser um item opcional para se tornar uma necessidade. Esse uso quase obrigatório é impulsionado por aplicativos pensados para prender a atenção do usuário por horas.

Inicialmente visto como um dispositivo capaz de aproximar as pessoas e criar uma comunicação mais eficiente, os aparelhos celulares hoje são usados para uma infinidade de coisas. Pedir comida, ouvir música, assistir vídeos, fazer fotos, participar de discussões e mais uma infinidade de usos. Ao lado desse uso constante, existe também uma grande demanda por captação de uso de dados dos usuários para fins publicitários e geração de receita.

As big techs, grandes empresas de tecnologia, investem cada vez mais em usar esses Dados para aperfeiçoar seus aplicativos e tornar os aparelhos e aplicativos indispensáveis para as pessoas. O problema é que essas estratégias não costumam levar em conta o bem-estar dos usuários, mas apenas ganhos financeiros.

A nomofobia é um termo usado para descrever a ansiedade e o medo que algumas pessoas sentem quando estão longe do celular. O termo é uma combinação de “no mobile phone phobia”, ou “fobia de não ter celular”, em tradução livre. Ela pode ser enquadrada como um transtorno de ansiedade classificado como transtorno fóbico-ansioso no CID 10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) da psicologia.

Contudo, apesar do termo e da possibilidade de ser encaixado no CID de transtornos de ansiedade, é importante ressaltar que não estamos falando exatamente de uma fobia. Consultei com o psicanalista Caio Garrido, que estuda os impactos dessas tecnologias, para saber melhor sobre a questão.

Segundo ele, o termo ainda não é usado na literatura psicanalítica, apesar de estar dentro dos transtornos de ansiedade e poder ser visto sob essa lente.

“Ainda não se vê uma discussão mais séria em torno desse novo tema das nomofobias nos círculos psicanalíticos mais importantes.”, ele explica. “Há sim um contínuo estudo, pesquisa, artigos e livros sendo lançados, assim como conferências na Psicanálise acerca do assunto das novas tecnologias em geral, e o impacto delas em nossa subjetividade.”

Existindo formalmente ou não, é fato que o termo faz referência a uma condição bastante real e que afeta cada vez mais pessoas: a incapacidade de se distanciar de aparelhos eletrônicos e redes sociais. Mas, ao ser rapidamente denominada como uma fobia, acabamos reduzindo os impactos desse tipo de tecnologia a apenas essa condição, talvez até reduzindo a sua complexidade.

Garrido explica que a fobia, “como estrutura psíquica (que se diferencia da neurose obsessiva, da psicose, e outras) é algo que compromete a vida do sujeito, que parece ser o que acontece no que denominam de nomofobia”. Mas, quando falamos sobre aparelhos celulares especificamente, há mais que apenas um medo de estar afastado dele, mas um verdadeiro temor, que pode ser relacionado com outros processos.

“Sob o guarda-chuva da nomofobia, parece que são colocados vários outros tipos de sintomas psíquicos, fobia esta que pode ser consequência de outros quadros psicopatológicos, ou esses quadros serem apenas facetas dessa identidade maior chamada nomofobia, tais como a ansiedade e fobia social, a compulsão, a agorafobia, as confusões identitárias, as inibições, entre tantos outros.”, explica Garrido.

Isso é, dentro da simplificação causada pelo nome “nomofobia”, estamos falando também de uma condição que interfere em uma série de outras alterações psíquicas. Falar apenas em medo de estar afastado do celular não questiona outros efeitos que o aparelho causa, além da dependência. Podemos citar como exemplo uma pesquisa dos Estados Unidos que indicou aumento da pressão arterial e batimentos cardíacos em pessoas que ficaram muito tempo afastadas de seus smartphones.

O FOMO, ou Fear Of Missing Out [medo de ficar de fora] é justamente o nome dado a essa ansiedade de perder algum acontecimento importante por estar afastado das redes. Uma notificação ou mensagem já podem ser gatilhos para ativar esse medo, criando uma necessidade imediata de checar o celular, por exemplo. Como explica Caio Garrido, o vício, de forma geral, é marcado pela produção de dopamina, um neurotransmissor relacionado à sensação de prazer e alegria. Falando sobre jogos de azar, por exemplo, esse sentimento positivo vem mais da tentativa e do risco de perder, do que do ganho em si. A expectativa gera uma descarga maior que o sucesso. Mas, ele ressalta: “a dopamina tem um certo estoque. Pode haver um déficit se há um excesso de gasto.”

Os smartphones e as redes sociais são capazes de gerar grandes descargas de dopamina e, por isso, seu uso exagerado é comparado com a relação que temos com outros vícios. Essa descarga de prazer instantâneo tende a ser bastante aditiva e as grandes empresas de tecnologia exploram justamente essa possibilidade de dependência. Cada vez mais pesquisadores buscam entender a relação entre vídeos curtos como aqueles usados no TikTok e depois levados para o Instagram Reels e YouTube Shorts e a produção de dopamina. E, ainda, como essa produção exagerada leva a escassez e pode influenciar outras questões de saúde mental.

Por isso, para que seja possível entender de fato a extensão do problema, precisamos entender que as engrenagens por trás dessa dependência não são responsabilidade individual e nem acidentais, mas alicerçadas em estratégias de grandes empresas. Com cada vez mais investimentos em otimização desses produtos, o bem-estar de quem utiliza é completamente ignorado. A “nomofobia” não representa apenas um dilema individual, mas aponta para uma responsabilidade mais ampla das corporações por trás dessas tecnologias.

Por Maria Cecília Oliveira Gomes, especialista da USP.

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