Previsões catastrofistas apontavam que o padrão IPv4 estaria esgotado ainda na década de 1990 e que, se não fosse rapidamente substituído pelo IPv6, a Internet chegaria ao fim. Havia fundamento nessas profecias. Enquanto o IPv4 possibilita o registro de 4 bilhões de identidades – algo razoável em uma época em que as conexões eram realizadas quase que exclusivamente por PCs –, seu sucessor, o IPv6, viabiliza 340 undecilhões de dispositivos.
Ocorre que a Internet está aí, mesmo com a substituição dos modelos de IP’s ocorrendo em ritmo bastante moroso. Levantamento do Google apontava que, em 2017, a implementação do IPv6 limitava-se a 18,67% no mundo. Os Estados Unidos, país mais adiantado quanto à migração, registravam 25%.
Já comum entre as grandes teles, o IPv6 é ainda muito pouco utilizado pelos ISPs. Isso, em boa medida, porque o IPV4 viabilizou a existência de muitas dessas empresas. Utilizando o padrão, puderam, com o uso do Cgnat, reunir milhares de usuários sobre um único IP e, desta forma, ampliar significativamente suas carteiras de clientes em banda larga sem realizar investimentos significativos, por exemplo, na aquisição de blocos de IPs. A capacidade superior do IPv6 possibilita que os dispositivos sejam registrados individualmente. Porém, como a migração demanda investimentos, acaba sendo postergada.
Um dia, o IPv4 será extinto. Ainda não se sabe quando. Por ora, há várias razões, principalmente, de ordem tecnológica para que os ISPs migrem para o IPV6. Mas, neste texto, vamos nos ater apenas a um de outra natureza: a eliminação do risco de serem responsabilizados judicialmente em investigações sobre cibercrimes.
Já em 2017, o Brasil figurava na segunda colocação ente os países onde mais ocorriam cibercrimes, conforme levantamento da Norton Cyber Security. Neste cenário, os ISPs, que fornecem pouco menos de metade das conexões de Banda Larga do País, são, na proporção em que os crimes cibernéticos se multiplicam, cada vez mais chamados pela Justiça a fornecer históricos de logs e navegação de clientes que são alvo de investigações.
A reunião de amplos grupos de usuários sobre um mesmo IP possibilitado pelo uso do Cgnat sobre IPv4 impede a identificação de um internauta específico, o que, não raramente, torna uma investigação criminal inócua. Uma solução paliativa acaba sendo o uso de formulários para a geração de scripts, que apontam portas de origem e destino de uma conexão. Às vezes, a ferramenta consegue individualizar a conexão. Porém, em boa parte dos casos, limita-se a reduzir de milhares para centenas o número de integrantes de grupos onde está o suspeito investigado, o que, ao apontar muitos “possíveis alvos”, não satisfaz a Justiça.
Aí, surgem dois problemas para os ISPs. Um é o de revelar dados de usuários sem que tenha havido solicitação judicial nesse sentido, o que configura violação dos direitos à proteção de dados garantidos pela LGPD. O outro é o crescente desagrado da Justiça perante a incapacidade de identificar as conexões de pessoas investigadas. Isso muitas vezes leva os ISPs a terem de se defender judicialmente.
Nessas ocasiões, quase que em uníssono, apontam as limitações tecnológicas do Cgnat e o fato da lei ser omissa quanto obrigatoriedade de guarda da informação de porta lógica. Ocorre que esta argumentação, por ser tão comum no meio jurídico, precisa ser refutada uma única vez para que surja uma jurisprudência que tornaria obrigação dos provedores dispor e fornecer quando solicitados a identificação precisa de usuários investigados. Ao mesmo tempo, a justificativa é falha, já que o marco civil da internet determina a guarda de logs pelos ISPS.
Além da geração de scripts, há outras ações capazes de identificar internautas específicos, mas elas não funcionam em todos os casos. Um exemplo é a instalação de um servidor de Syslog. Esta e outras soluções, além de não garantirem a identificação de usuários, aumentam significativamente os custos, por conta de aquisição e manutenção de equipamentos e serviços. Portanto, a melhor solução para o ISP passa pela implementação do IPV6 em sua rede.
Os provedores conseguiram crescer mais de 10% ao ano com o atendimento a uma demanda significativa por Banda Larga em áreas ignoradas pelas grandes teles. Os anos passaram e, só levar o serviço a quem precisa não basta mais para garantir mercado a essas empresas. Hoje, administração profissional e atualização tecnológica são determinantes para se sobreviver num ambiente cada vez mais competitivo.
A atuação em áreas distantes dos grandes centros combinada com um movimento de descentralização econômica fará, em breve, os PPPs registrarem significativa demanda por parte de empresas que buscam valerem-se do IoT, algo que só pode ser viabilizado por ISPs que dispões do padrão IPV6. A adoção do novo modelo de protocolo será fundamental na oferta de seus serviços no médio e longo prazos. Por ora, os riscos jurídicos configuram a urgência para que essa migração ocorra o quanto antes.
Por Fabrício Viana, advogado sócio da VianaTel e da RadiusNet.
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