Pisquei os olhos e se passaram 100 dias! Isso mesmo que você acabou de ler: já se vão mais de 100 dias isolada.
Ao relembrar um pouco os primeiros dias do mês de março, me dei conta que tudo mudou muito abruptamente. Decisões importantes tiveram que ser tomadas em um curto espaço de tempo, com um volume muito restrito de dados para análise.
Para quem não se lembra, a OMS declarou pandemia no dia 11 de março. Naquele momento, mal sabia eu que estava prestes a trabalhar no antigo escritório da Vittude pela última vez!
A declaração de pandemia
No dia 12 de março fui normalmente ao escritório, trabalhei na parte da manhã e no período da tarde segui para um compromisso no escritório da Microsoft. Lembro como se fosse hoje. Era a semana da mulher, estávamos atuando em um evento sobre diversidade.
Durante o evento percebi certa movimentação. Uma das diretoras que deveria estar presente foi convocada para uma reunião de emergência. Nos corredores não se falava de outra coisa que não fosse Covid-19. Até aquele instante meu sistema de alerta ainda estava desligado.
No caminho de volta para casa peguei um Uber junto com a Andrea Lagareiro, uma psicóloga da Vittude. Debatemos sobre a agitação que vimos no cliente e começamos a pesquisar os jornais freneticamente para saber o que se passava. Lembro da Andrea mandar uma mensagem ao marido para entender se havia acontecido algo enquanto estávamos no evento.
Ali, ainda dentro do carro, decidi mandar uma mensagem ao Everton meu sócio e ao Fábio, até então nosso HR Advisor. Relatei o que tinha observado naquela tarde e questionei a eles se era o momento de tomarmos alguma medida diante da notícia da OMS.
Percebi certa hesitação entre os dois. Não tínhamos noção do impacto daquela declaração e muito menos da proporção que tudo tomaria nas semanas seguintes. Confesso que foi interessante sentir o papel de CEO de fato chegando. Sabia que precisava tomar uma ação imediata, esperar poderia ser pior.
Perto das 19h soltei um primeiro aviso sobre trabalho remoto em um grupo de WhatsApp e ouvi burburinhos da equipe. Vários estavam zero preocupados com o vírus. No entanto, mantive-me firme na decisão e escrevi um comunicado oficial a todos da empresa. Nele expressava minha preocupação com a saúde e bem-estar de todos e seus familiares. Reforcei ali a importância de priorizarmos a segurança de todos.
Não foi uma decisão fácil. Olhando de fora, pode parecer simples, mas foi uma decisão difícil e solitária. Como havia colocado o home office como opcional, algumas pessoas optaram por ir até a empresa na sexta, dia 13 de março, para trabalhar e buscar seus equipamentos de trabalho. Eu não voltaria a pisar em nosso escritório pelas próximas 7 semanas.
O início do isolamento social
Quando falei com a equipe no dia 12, ainda não tinha muita certeza do que aconteceria nos próximos dias ou semanas. Meu comunicado oficial deixava claro que haveriam novas instruções até o começo da semana seguinte.
No domingo, dia 15 de março, decretei oficialmente o home office compulsório. Essa decisão seria mantida até que tivéssemos uma sinalização de vacina ou redução da curva de contágio.
Os primeiros dias foram absurdamente tensos. Parecia que estávamos em preparação para uma guerra. Enquanto algumas empresas ainda mantinham rotinas normais, nós estávamos desenhando planos de contingência.
O que fazer se a demanda recuar? Quanto tempo temos de caixa? Como está o burn rate? Onde podemos cortar custos? Que outras linhas de receita conseguiremos desenvolver? O que será mais necessário agora?
A contingência
Junto com meu sócio e com apoio dos investidores, desenhamos 3 cenários, considerando queda na receita, crescimento igual a zero e um crescimento bem irrisório. Avaliamos possíveis cortes de custo, despesas desnecessárias e suspendemos temporariamente as contratações que estavam em andamento.
Tínhamos duas novas pessoas previstas para entrar no time no dia 16/3. Foi ali que começou minha insônia. Não parava de pensar nas pessoas. Uma delas já havia pedido demissão do emprego anterior, estava pronta para começar e eu decidi adiar seu início.
Foram conversas difíceis, explicando o momento, a incerteza a importância de aguardar mais alguns dias.
Ao longo daquela semana tive contato com outros empreendedores, falei com mentores, fiz sessão dobrada de terapia e passei muitas horas acordada refletindo e avaliando possíveis desdobramentos.
A primeira semana se passou e apesar de desenhar alguns cenários mais pessimistas, via os ponteiros dos agendamentos de consulta subindo. Comecei a observar não só um aumento de tráfego, como também a fazermos novos picos históricos de streaming. A demanda estava subindo, e não era como antes, ela mostrava sinais de muita força.
No início da segunda semana ainda pensava em possíveis reduções, tive certeza de onde poderíamos fazer cortes. A primeira opção bastante relevante para nosso momento: o escritório.
Revisei mais alguns serviços que se tornaram supérfluos e segui com a decisão de corte. O que podia parecer insensato ali no início, se revelou uma decisão muito acertada. Ao pensar na preservação de caixa, otimizamos a destinação dos recursos.
Continuei observando os picos de agendamento e no meio da segunda semana, pra ser mais precisa no dia 25/03, decidi que não daria para segurar as contratações. Muito pelo contrário, teria que fazer onboarding muito rápido das pessoas que já estavam aprovadas e me preparar para escalar o time.
Os desafios com a digitalização dos processos de RH
Quando a pandemia começou éramos 13 Vittuders, nome como chamamos os membros do nosso time. Hoje, no momento em que escrevo esse artigo, já somos mais de 40.
Não conheço pessoalmente mais de dois terços do meu time. Olhar para trás e ver o que se passou nestes mais de 100 dias isolada é surreal.
Quando decidi fazer o onboarding das primeiras pessoas de forma remota não tinha a menor estrutura para fazê-lo. Não sabia exatamente como começar, como enviar os equipamentos e como fazer os treinamentos iniciais. Até então, o processo de receber um novo colaborador sempre tinha sido feito de forma presencial.
Lembro de ligar para as duas candidatas aprovadas e perguntar: topam começar hoje? As duas eufóricas responderam que sim. Precisei ser sincera com elas e dizer que não sabia exatamente como fazer isso. Perguntei se elas podiam gentilmente usar máquinas próprias por um período, até que eu conseguíssemos arrumar a casa. As máquinas haviam ficado no escritório e o prédio ficou fechado nas primeiras semanas.
Quando finalmente retornei ao escritório, as duas já haviam saído de São Paulo, decidindo passar o tempo de home office na casa dos pais em cidades do interior. A logística tinha ficado mais complicada.
Os dias e semanas foram passando. Faço parte de alguns grupos de empreendedores e fomos aos poucos trocando boas práticas. Fomos aprendendo em conjunto a nos adaptar ao que muitos convencionaram chamar de “o novo normal”. Oras, é o que temos para hoje, não é mesmo?
Confesso que é interessante olhar para trás e perceber o quanto evoluímos. O quanto fomos rápidos em nos adaptar. Como dizia Darwin, sobrevive aquele que se adapta melhor às mudanças e não o mais inteligente.
A falta do contato físico
Estava aprendendo a recrutar, selecionar, fazer onboarding e treinar as pessoas online. Mas ainda havia uma coisa que me incomodava: a falta do abraço apertado. Sempre gostei de receber bem as pessoas, ainda mais quando se trata de uma pessoa nova no time.
Sem contato face to face, sobrava em mim um certo aperto no peito. Fiquei dias me questionando sobre este sentimento. Sou bastante sinestésica! Passei dias refletindo e buscando alternativas para substituir aquele abraço de urso que gosto de dar nas pessoas. Pareço até a Felícia, do desenho animado rs.
E foi, entre reflexões e sessões de terapia que surgiu a ideia de resgatar algo que adorava fazer na infância e adolescência: escrever cartas. A primeira que escrevi foi para o Nilson, nosso Head de TI.
Foi uma carta cheia de emoção, onde contei para ele como Everton e eu havíamos fundado uma empresa sem saber como escrever uma linha de código sequer.
Naquele pedaço de papel falei dos meus sonhos, de como nasceu a Vittude e há quanto tempo eu sonhava em ter uma pessoa madura e experiente ocupando a posição dele. Me emociono ao lembrar deste dia. Aliás, acho que me emociono em quase todas as cartas que escrevo.
Coloco meu coração e minhas emoções nas palavras. E quer saber? A gente prepara o kit de boas-vindas com muito carinho, mas de todos os itens que enviamos, sabe qual é aquele que as pessoas mais agradecem e elogiam? A carta! A boa e velha carta escrita à mão, como nos velhos tempos.
Outro dia, participando de uma palestra, recebi a seguinte pergunta do mediador: Tati, o que você acha que as empresas estão fazendo para combinar tecnologia com uma cultura que cria experiências digitais envolventes para seus funcionários?
Respondi algumas coisas relacionadas à digitalização dos processos, mas não pude deixar de citar a ideia da carta. Um exemplo de algo simples, de baixíssimo custo (afinal é só um pedaço de papel), mas que teve o poder de criar uma das experiências mais envolventes que vivi nos últimos tempos enquanto líder. Já pensou em escrever uma cartinha para seu time?
A demanda explodiu
Vou retomar o apuro das primeiras semanas! Ali quando decidi começar a fazer o onboarding do jeito que dava também percebi uma coisa, eu precisaria aprender a “domar um touro bravo”.
Rasguei os planos de contingência! Fechamos março com um crescimento de 35%. E era só o começo. Cada dia que passava era importante. Estava ficando aflita com a avalanche de coisas que se acumulavam. Faltavam braços, muitos braços. Comecei a ter pequenas crises de ansiedade. Já estava trabalhando em um ritmo frenético, sem folgas, sem finais de semana.
Ouvi de um psicólogo e amigo uma dica sobre priorização. Lembro dele falando ao telefone Tati, não espere os pratinhos caírem, derrube logo todos eles e segure só o mais importante.
Outra psicóloga, também acompanhando meu ritmo quase insano, me enviou uma mensagem no privado. Tati, você está se cuidando? Lembre-se que heroína boa é heroína viva. Aprenda a dizer não! O não para o outro é um sim para você, é um gesto de autocuidado, por favor lembre-se disso. Guardei essas mensagens com muito carinho e segui à risca.
Derrubei todos os pratinhos e escolhi um só: escalar o time. Durante várias semanas ocupei pelo menos 80% da minha agenda com desenho de organograma, criação de job description, anúncio de vaga, triagem de currículos, entrevistas, testes e mais a efetivação das propostas.
Não estava dando conta sozinha! Não tinha velocidade suficiente e escolhi trazer para o time uma peça chave: alguém responsável por aquisição de talentos. Que benção recebi quando trouxe a Ju para o nosso time. Os processos começaram a ser mais rápidos, eficazes e toda segunda-feira tínhamos pessoas novas começando no time. Ainda é assim toda semana.
Aprender a priorizar não é fácil
Mesmo tendo a certeza que priorizar era importante, declaro que não foi nada fácil. Em alguns dias vi minha caixa postal ultrapassar 500 e-mails sem leitura. Quase tinha um surto. Mensagens se acumulavam em todos os canais (LinkedIn, WhatsApp, e-mails, Instagram).
Por mais consciente que seja a decisão de deixar todas as outras tarefas de lado, sinto que deixei muita gente sem resposta, perdi negócios por falta de retorno em tempo hábil, deixei pessoas frustradas e acabei sofrendo também.
Me sentia culpada por não conseguir responder, queria que o dia tivesse 40 horas, 50 se fosse possível, mas não era.
Logo, coube a mim exercitar algo que minha terapeuta sempre diz: aceitar as coisas que não posso mudar e fazer minhas escolhas. Tem sido uma fase de muito aprendizado. Apesar do desafio e das dores, priorizar me trouxe velocidade e eficiência.
Não dá pra negar que meu coração se enche de alegria ao ver a sala de reunião virtual cada vez mais cheia. Perceber que no meio de uma crise estamos gerando tantos empregos é gratificante demais, ainda mais para uma executiva que se viu obrigada a desligar pessoas boas nas crises de 2008 e 2015.
A priorização me trouxe de presente um time de líderes de altíssimo nível. Se até março éramos Everton e eu tentando gerir um grupo pequeno de pessoas, agora temos diretores, gerentes e coordenadores.
Ainda fico meio boba ao perceber o time de gente altamente capacitada que conseguimos reunir. E aí, é claro, bate um baita orgulho pela decisão de derrubar os pratinhos e focar só em uma coisa: trazer as melhores pessoas.
A transição de empreendedora para CEO
Uma outra coisa mudou depois de 100 dias isolada. Eu vi, aos pouquinhos, a empreendedora ir se transformando em CEO.
Sabe o processo de metamorfose da borboleta? É assim que eu me sinto. Ocupar a posição número 1 de uma organização pode ser muito solitário, em momentos como o atual, mais ainda. Porém, devo confessar que ficar sozinha neste período de pandemia foi transformacional.
Os momentos de introspecção me proporcionaram um nível de reflexão que talvez eu só tenha experimentado correndo maratonas. Como atleta amadora, todos os meus percursos de 42km tiveram mais de 4 horas de duração.
Apesar da multidão ao redor, correr uma maratona é a atividade mais solitária que conheço. São horas e horas em silêncio, o corpo fazendo esforço e a mente divagando. Passa a vida na cabeça, lembranças e memórias vêm à tona. Novas ideias surgem e muita criatividade é capaz de brotar. A ideia de empreender apareceu, como num estalo, durante a maratona de Chicago, em outubro de 2015. A Vittude nasceria meses depois, em 2016.
Os benefícios do journaling
Uma das estratégias que adotei para manter a sanidade foi escrever um diário. Vinha enfrentando dificuldade para gerir a quantidade imensa de informações e pensamentos decorrentes de tudo que acontecia dia após dia.
Nas primeiras semanas, dado o volume de decisões necessárias, intensifiquei minhas sessões de terapia online. Entretanto, depois de dois meses, as chamadas por videoconferência começaram a ficar incômodas. Eu precisava de atividades que me ajudassem a ficar desconectada de câmeras, telas de computador e da televisão. E veio então a ideia do journaling.
Comecei meu diário no dia 30 de maio, já com quase 80 dias de isolamento. Uma das coisas que anotei da primeira folha foi: apesar da quarentena não ter começado ontem, somente hoje me sinto pronta e confortável para começar meus relatos por aqui. Relendo esse trecho hoje fez total sentido.
Se no começo meu corpo estava em modo de alerta, depois que comecei a escrever, meu cérebro fez grandes e nítidas evoluções. Uma das principais coisas que observo é que em vários dias me sinto grata. A gratidão tem uma correlação relevante com a manutenção das emoções positivas e da sanidade mental.
Passei a enxergar o tempo a sós como um presente, como uma oportunidade para me conhecer melhor e para amadurecer. Vi, de verdade, uma empreendedora sonhadora e ir, aos poucos, se transformando em uma CEO determinada.
A gratidão como estímulo de emoções positivas
Sinto-me grata por viver em uma casa confortável, por ter meus pais com saúde (os dois estão no grupo de risco com 72 e 78 anos), por ter energia e disposição para levantar todos os dias da cama com sorriso no rosto.
Durante este período tive dois tios internados com o Covid-19, o que deixou a família bastante vulnerável. Foram dias de oração, muito pensamento positivo, todos unidos vibrando boa energia para que tudo ficasse bem.
Posso atestar que a fé é um elemento crucial. Tudo ficou bem depois de quase 8 dias de internação. Meu tio é médico e, apesar de estar no grupo de risco, seguiu trabalhando e já retornou para a sua rotina normal.
Essa doença nos coloca em contato direto com o medo da morte e com a ideia certeira de finitude da vida. Ela nos faz dar valor ao que realmente importa: saúde, família, amigos…
Passei a cuidar mais da minha casa, paixão antiga que foi restabelecida. Durante a adolescência sonhei em fazer arquitetura por curtir casas, decoração e paisagismo. Acabei escolhendo a engenharia civil pela falta de aptidão e criatividade para os desenhos técnicos. Mas o gosto por objetos de decoração e plantas permaneceu guardado comigo.
Descobri um prazer imenso no cultivo de orquídeas. É uma forma prazerosa de me desconectar e ficar algumas horas longe das telas do computador, smartphone e televisão.
O autoconhecimento e a evolução
Após mais de 100 dias isolada percebi que gosto muito da minha própria presença. Tive a oportunidade de mergulhar em momentos de introspecção, reflexão e, como diz minha psicóloga, experimentar um processo de depuração. É solitude que se diz, não é?
Como é bom olhar para o velho que não cabe mais e que precisa ser deixado no passado. Me dar conta que gosto de cozinhar, que amo fazer feira (inclusive usando aqueles carrinhos de vó), curtir cada cantinho da minha casa, admirar os pequenos detalhes.
Me questionei algumas vezes: quem sou eu? Qual minha razão de existir? E nos meus devaneios me dei conta que sou mulher, sou filha, sou amiga, sou mãe do Freud, sou fundadora da Vittude, sou CEO à frente de uma startup que está ajudando a transformar a vida das pessoas e a realidade de muitas empresas para melhor.
Sou aquela que adora gargalhar, que ama estar rodeada de amigos, cozinhar para eles e passar horas a fia jogando conversa fora! Sou a corredora que quer voltar a fazer novas maratonas, correr pelo mundo, conhecer novas culturas e que sonha em continuar causando impacto positivo na vida das pessoas.
A pandemia me deixou mais centrada, consciente, serena e focada. A empresa que fundei mudou de patamar: quadruplicou de tamanho. Os desafios se tornaram maiores e precisei me reinventar.
Em alguns momentos tive que recorrer à intuição e pude entrar em contato com experiências profissionais e de vida de décadas passadas. Me dei conta que trabalho desde os 14 anos de idade.
Cada líder, cada feedback difícil, cada lágrima derruba (muitas escondidas no banheiro), cada desafio, cada “porrada”, cada não, cada sorriso e acerto me trouxeram até aqui. Foram meus quase 39 anos de vida e 25 de estrada profissional que moldaram a Tati que hoje olho com orgulho no espelho.
Aliás, gosto da imagem que vejo refletida em frente a mim. Mais madura, autoconsciente, resiliente, pronta para enfrentar a jornada que ainda tenho pela frente. Que a vida sempre nos proporcione formas de nos redescobrir e reinventar!
Por Tatiana Pimenta, CEO e fundadora da Vittude
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